Em agosto de 2023, cheguei ao fim de mais uma etapa do tratamento contra a ansiedade depressiva. Com o acompanhamento do psiquiatra com quem faço o tratamento, encerrei um período de alguns anos de medicação, com uso diário do escitalopram e, nas raras situações de crise, da quetiapina. Foi a segunda tentativa de concluir o tratamento com medicamentos. Eu estava bastante otimista, porque sentia bem pouco os sintomas da doença. Na verdade, o que eu sentia era que meu pensamento estava bem mais dinâmico. Voltei a pensar em projetos mais ousados, como retornar ao serviço público e ter aquilo que a Organização Internacional do Trabalho define como trabalho decente: “o trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas”. Nessa segunda tentativa, eu e o dr. Simão¹, o psiquiatra, passamos mais tempo diminuindo as doses do remédio, até que, em agosto, eu finalmente parei totalmente de tomar o medicamento. Movido pelos bons ventos da restauração, quis me desfazer também de algo que um dia foi importante enquanto redução de danos², mas que naquele momento demonstrava sutilmente seus prejuízos: a maconha. Escrevi para o dr. Simão comentando do meu interesse em fazer um teste de retirada da maconha. Eu começaria aos poucos, misturando à maconha ervas usadas para chá, como camomila, erva-doce, jasmim, calêndula. Outra tentativa seria diminuir a quantidade de uso, já que eu fumava um cigarro todas as noites, depois do trabalho, acompanhado de jazz, MPB e eletroclash. No fim das contas, numa segunda-feira, dia 4 de setembro de 2023, Semana da Pátria, resolvi reduzir a zero o fumo e observar até quando eu conseguiria ficar sem o hábito. Segui durante toda a semana sem a maconha, me preparando pra iniciar um novo trabalho de revisão de texto.
Tudo transcorria numa tranquila e previsível sucessão de tarefas. E tudo — a tranquilidade e as tarefas — foi interrompido no sábado, dia 9 de setembro. A casa estava limpa, aparentemente em ordem. Foi um dia em que também saí, como de costume, pra pedalar, não como exercício físico, mas como passeio. Num dos trajetos, parei num posto de gasolina e comprei uma cerveja sem álcool. Me sentei próximo aos chafarizes da Catedral de Maringá, no Centro da cidade. Eu não me lembro ao certo, mas provavelmente reiterava, repetia, insistia em pensar nos ideais de um trabalho decente, nas barreiras que me separavam dele, nas minhas tentativas de lidar com o trabalho precário, de me livrar da encenação do empreendedorismo, de uma espécie de ficção que pouco edificava. Esse foi o dia. À noite, esse sentimento de descontentamento alcançou o seu limite. Dias depois, eu entenderia que foi causado por perdas além do trabalho. Sábado à noite, eu estava em casa eufórico, agitado. Meu pensamento parecia estar dentro de uma turbina. Começava ali um colapso nervoso — uma jornada de sofrimento psíquico. Mas também se iniciava um divisor de águas, uma brecha para o meu reencontro com Jesus Cristo.
Dentro do peixe, Jonas orou ao Senhor, o seu Deus. E disse: “Em meu desespero clamei ao Senhor, e ele me respondeu. Do ventre da morte gritei por socorro, e ouviste o meu clamor. Jogaste-me nas profundezas, no coração dos mares; correntezas formavam um turbilhão ao meu redor; todas as tuas ondas e vagas passaram sobre mim. Eu disse: Fui expulso da tua presença; contudo, olharei de novo para o teu santo templo."
Jonas 2.1-4 (NVI)
Nessa noite, eu fui surpreendido por um cerco simbólico, uma quarentena cujos efeitos foram diminuindo gradativamente, por alguns meses. Eu estava como Jonas, cercado pelo estômago de um peixe, sendo levado pra lugares aonde eu precisava passar. A casa onde eu morava se tornou o cenário desse cerco. Ela fica na frente do terreno, na lateral esquerda, enquanto a casa onde moram meus pais, que é maior, está nos fundos. Comecei a noite numa inquietação, mudando de lugar os móveis da sala. Depois passei para o quarto, onde comecei a reorganizar não só os móveis como as roupas e algumas caixas. Organizei as roupas de jeitos diferentes, várias vezes ao longo da noite e da madrugada. Organizava por cor, tipo, se mais nova, se mais usada. Os objetos eu organizei por conteúdo, por tamanho, mudando aquilo que havia dentro, colocando caixa dentro de caixa e mudando o lugar das caixas dentro do guarda-roupa. Elas ficavam todas espalhadas no chão ou em cima da cama. Era uma arrumação frenética que também acontecia em relação aos objetos que estavam sobre a mesinha que ficava ao lado da cama. Nela estavam uma boneca em miniatura, que se parecia com a Chantal, a boneca da série Round 6, e uma plantinha, uma mini Espada de São Jorge. Elas também ganharam significações em torno da situação que se formava. Eu ziguezagueava pela casa, entre o quarto, a sala e o banheiro, observando se os objetos estavam milimetricamente no lugar, e se esse lugar fazia sentido numa lógica que se diversificava muito rapidamente, me fazendo reorganizar repetidamente. Fiquei nessa obsessão até a alta madrugada.
Nesse vai e vem, eu passei das caixas e objetos para o texto. Comecei a fazer anotações num caderno. Na verdade, eu retomei anotações sobre direitos autorais, que havia feito dias antes do colapso. Era uma reflexão sobre como estamos a todo tempo, na internet, principalmente nas redes sociais, produzindo conteúdo sem o pagamento por esse trabalho, enquanto empresas vendem relatórios sobre o que fazemos online, em forma de perfil de consumo, pra muitas e muitas outras empresas. Desde conteúdos menos especializados até os mais complexos. O sentimento que me movia nessa situação era de injustiça. Injustiça porque eu, como profissional do texto, percebia que meu trabalho, em termos de capital social, era bastante valorizado, mas em termos de sobrevivência, pouco significava. Afinal, se eu ficasse sem trabalho, talvez conseguisse me manter por um mês. Me refiro não só à revisão de textos, mas ao trabalho de escrita de projetos culturais, serviço que eu oferecia a artistas.
Pensando em Jonas, e na necessidade dele ser transportado na barriga de um peixe pra chegar até o lugar determinado por Deus, mais tarde eu entendi que o colapso nervoso criou um espaço de isolamento e reflexão, pra que eu pensasse no meu limite em relação ao trabalho precário, mas também na complexidade das outras causas desse problema de saúde mental. A principal delas foi a minha insatisfação com as relações afetivo-sexuais. No quarto da minha vida privada, a obsessão pela organização traduzia simbolicamente o sofrimento pela condição precária no trabalho e na vida amorosa. Como um homem gay, um adulto com 41 anos, é comum que eu me sinta uma pessoa de segunda categoria; é comum que minhas relações sejam demarcadas pela marginalidade. Contratos de prestação de serviço e encontros de aplicativos de pegação têm algo em comum nessa rotina que está sempre prometendo algo que não se cumpre. Ali, eu meio ao caos de uma forte crise de ansiedade depressiva, eu usava os objetos do cotidiano da casa pra simular uma organização do meu pensando e das minhas condutas, entre quatro paredes. Mas o que eu queria mesmo era me ressituar socialmente — assumir um posicionamento franco.
Depois do sábado, a insônia persistiu. No dia 11 de setembro, segunda-feira, eu senti uma espécie de fobia social, um forte sentimento de aversão às pessoas, principalmente no contexto digital. Na verdade, a fobia era em relação ao próprio digital. Assim como na madrugada do colapso, quando eu fiz anotações frenéticas sobre perdas de direitos autorais, ao acessar as redes sociais, os mensageiros e outras plataformas na internet, me senti bastante vulnerável, um sentimento de mal-estar, de que estava sendo vigiado para além do costumeiro rastreamento de dados que as empresas fazem. As poucas pessoas com quem falei não pareciam reais, o que elas escreviam pareciam textos gerados pelo ChatGPT³. As redes sociais pareciam mais pornográficas do que na verdade são. Na minha imaginação, o que estava acontecendo era uma versão digital do 11 de Setembro, que aconteceu nos Estados Unidos, em 2001. Estávamos sendo encurralados pelas big techs, empresas gigantes de tecnologia como Google, Meta, Apple e Microsoft, e elas haviam se apropriado não só de nossos dados, mas promoviam uma incrível desordem global usando redes sociais, computadores, telefones, contas de banco, cartões de crédito, fotografias, vídeos, áudios, mensagens de texto, emails e tudo o mais.
Isso fez eu me sentir sob ataque. Não tinha clareza do que estava acontecendo. Tinha dúvida sobre o que poderia ser considerado real naquele contexto. Não confiava mais na comunicação com as pessoas, com exceção da minha mãe e do meu pai. O que eles diziam, sim, me parecia real, legítimo. Isso tem a ver com a convivência. Nos últimos anos nós enfrentamos francamente o fato de que eu não sou um filho heterossexual, e que por isso eles, não sem dificuldades, não sem conflitos, precisariam entender que ser gay me faria passar pelos horrores da homofobia, a começar por aqueles praticados pela igreja onde fui batizado. Um desses horrores, o principal, foi o alcoolismo. Lidar com o estigma de pessoa abominável por ser gay se tornava menos revoltante com alguns mililitros de álcool no sangue. Felizmente, o álcool faz parte do meu passado, assim como a maconha. O último copo foi consumado em 2019, quando eu já estava em tratamento com sessões de psicanálise e consultas psiquiátricas. A situação de autodestruição só foi contornada porque eu percebi amor legítimo da parte dos meus pais e de boa parte da minha família. Isso foi decisivo no contexto do colapso nervoso, pra que eu não tivesse um sentimento de abandono e entrasse em desespero.
No meu 11 de Setembro, eu me sentia num estado de defesa. A reação imediata nessa situação foi excluir todas as contas de plataformas digitais, começando pelo Instagram e o WhatsApp. Isso fez com que minha atenção se voltasse ao ambiente doméstico, ainda sob suspeita. O mal-estar continuava. Depois de tentar ficar algum tempo sozinho em casa, voltei à casa dos meus pais. Minha mãe e meu pai estavam sentados na sala, com semblante abatido e em silêncio. Semanas depois, minha mãe disse que nos primeiros dias do colapso eu parecia uma criança, de tão frágil que estava. Meu pai estava no sofá maior e minha mãe estava no menor. Entrei, fui direto pra sala, me sentei em outro sofá, num lugar de onde eu podia ver os dois. Sentei e disse: “Eu não tô bem. Mãe, a senhora pode fazer uma oração por mim?” Imediatamente, minha mãe, que tem artrose nos joelhos, e mal consegue se agachar, ficou de joelhos e orou a Deus pra que ele me libertasse. O milagre aconteceu logo em seguida: instantaneamente, todo o ressentimento e toda descrença em Deus desapareceram. É como se uma grande barreira tivesse sido removida de mim e eu nunca tivesse deixado de acreditar em Deus. A fé, ou seja, a experiência e a conexão com Deus, com Jesus Cristo e com o Espírito Santo foram restabelecidas. Voltei a pensar com a mente de Cristo. Esse foi o meu divisor de águas. Ali se estabeleceu uma fronteira entre o Cláudio do passado recente e o Cláudio do presente. Daí em diante, foram dias, semanas e meses em que o colapso nervoso foi perdendo força e dando lugar, então, a uma rotina de convívio familiar, oração diária e leitura da Bíblia.
Hoje, sete meses depois do meu 11 de Setembro, tenho pensado em como Jesus Cristo, aquele que tem domínio sobre as doenças, na minha trajetória, fez questão de atribuir relevância à psiquiatria e à psicanálise, ao tratamento com medicamentos prescritos por um especialista. Jesus não nega a ciência. Foi nosso Pai, O Soberano Deus, que criou todo o mundo e, portanto, as bases elementares do conhecimento científico. Para Deus, não há disputa com cientistas, mas colaboração. Quando alguém tem fé, isto é, experiência de vida com Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo, essa colaboração acontece quando o Senhor cria, ele mesmo, os roteiros e as cenas, dirige os personagens, move mentes e corações e remove, através de uma lógica espiritual e de um pensamento crítico, o ressentimento, a raiva, a angústia, o trauma. Enquanto o apóstolo Paulo acreditou que lésbicas e gays estariam condenados ao inferno, antes disso, Jesus Cristo, num ato de amor por pessoas LGBTQI+⁴, simplesmente ignorou a conduta amparada na moral de seu tempo. Também por isso ele é o Cristo, porque tem discernimento para além do que é terreno. Seu ministério é instituir o amor como conduta. Louvado seja o Senhor!
Mas o pai disse aos seus servos: "Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado". E começaram a festejar o seu regresso.
Lucas 15.22-24 (NVI)
¹ Este nome é fictício.
² Redução de danos é uma forma de diminuir os prejuízos causados por drogas lícitas e ilícitas. A ideia é fazer com que as pessoas usuárias de drogas se tornem protagonistas nos cuidados com a saúde, na busca por direitos e políticas públicas individuais e coletivas. Esta definição foi resumida do site do Centro de Convivência É de Lei, cujo trabalho conheci em São Paulo, capital, onde fica a sede da instituição. Acesse o site: https://edelei.org/.
³ ChatGPT é uma ferramenta de inteligência artificial que gera, automaticamente, textos por meio de uma conversa feita por um chat, em seu site ou aplicativo pra telefone celular.
⁴ LGBTQI+ é uma sigla que significa Lésbicas, Gays, Travestis/Transexuais, Queers, Intersexos. O símbolo “+” indica que há mais identidades de gênero não listadas na sigla.